2.6.22

Encontro 2 / Violência institucional e dominação dos corpos. Para os reis da Bélgica: Lima Barreto no Hospital Nacional dos Alienados

Firmeza e labilidade da linha, entre o especular e o espetacular

por Antoine de Mena

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    Cem anos após sua morte, Lima Barreto e a sua prosa seguem ressoando como uma voz brasileira absolutamente contemporânea. Na vida e na obra do jornalista e escritor carioca, dois elementos foram fundacionais e reiterados: a humilhação, decorrente da experiência da raça como marcador da diferença social; e a frustração, começando por aquela de não poder testemunhar os valores de igualdade da abolição e da República sendo postos em prática na vida política e social do país.

    Neste contexto existencial de recondução das injustiças e das iniquidades passadas apesar da mudança de regime, Lima Barreto foi, seguindo as palavras de seu primeiro biógrafo Francisco de Assis Barbosa, um dos poucos da sua geração em “combater o escapismo decorativo e aristocrático dos que entendiam que cultura devia ser privilégio de uns poucos eleitos e não o bem comum de todo o povo”. Nesta perspectiva, Lima Barreto defendeu uma literatura combatente, se lançando numa cruzada literária contra as ideias, as práticas elitistas e as mentalidades que reproduziam o regime colonial de dependência, fidelismo e favores.

    Por um lado, a escrita de Lima Barreto apresenta elementos de vanguarda: o minimalismo de sua prosa, o seu estilo direto, a precisão descritiva da sua frase, a sua atitude anti-literária... Mas por outro lado, a radicalidade de seu compromisso social, a sua escolha de levar para frente uma arte sensível e acessível às massas, testemunham precisamente da impossibilidade do encontro do escritor com as vanguardas. Essas mesmas vanguardas modernistas que encontravam na obra dele aquilo que mais desejavam: uma escrita livre de academicismos, organicamente articulada com a língua falada contemporânea.

    Esta condição de Lima Barreto do habitar socialmente e literariamente o lugar da labilidade, do deslocamento, do desconforto, da passagem, do solilóquio frente às mazelas existenciais e, em soma, da reformulação permanente e singular da linguagem, seja talvez a marca distintiva da sua obra e o selo trágico da sua intemporalidade.


    2

    A proposição artística do cineasta e amigo Steve Berg me chegou na forma de um vídeo, de uma sequência de 39 minutos extraída de uma adaptação ficcional cinematográfica livre feita a partir do romance inacabado de Lima Barreto, o Cemitério dos vivos.

    Acompanhadas por uma banda sonora, um excerto de L'Île Re-Sonante, composição eletroacústica de Éliane Radigue, as imagens apresentam uma densidade plástica pouco comum. Passadas por filtros inesperados, elas adquirem uma profundidade que transmuta a sua natureza de bidimensionais para escultóricas.

 






    Confrontado com corpos alienados cujos bordos são luminescentes e as asperidades, porosidades e pilosidades hiper saturadas, cromaticamente aberrantes, tridimensionais, o nosso olhar é duplamente convocado, no lugar de uma percepção flutuante e de uma ininterrupta inquietação. A problemática é aqui a seguinte: entre os possíveis especulares e espectaculares que comparecem em toda tentativa de representação de subjetividades desamparadas, quebradas, alienadas, como sustentar a linha ética da visão artística?

    Os elementos de resposta foram dados, num primeiro instante, pela matéria fílmica mesma, e num segundo tempo, pelas características físicas do espaço de apresentação do trabalho.




                             

     

    As linhas dos corpos, as linhas dos rostos, as linhas das singularidades geraram uma série de dez desenhos, feitos a partir das imagens do vídeo. Simples, reduzidos a linhas cruas e despojadas de todo artifício.

    Na matéria fílmica, de novo, uma personagem brandindo um espelho dirigido para sua própria cara mas isento de todo reflexo, colocou o eixo da interrogação e da disposição física no espaço expositivo.

    O que olhamos quando olhamos um corpo alienado ? Para onde é direcionado o nosso olhar? O que que este olhar diz da possibilidade/impossibilidade do encontro com nós mesmos no rosto alheio ?

    A partir daí, a geometria da sala suscitou a disposição dos desenhos como extensões da imagem vídeo, e suscitou também a colocação de dois desses desenhos no eixo geométrico da superfície de projeção do vídeo. Obrigando assim o olhar a incorporar uma direcionalidade lateral, diagonal, indireta. E materializando também a impossibilidade do olhar frontal, a impossibilidade da coincidência com um mesmo.






    3

    As vanguardas do início do século XX investigaram e exploraram o conceito da linha, colocando ela num plano renovado de autonomia e sentido. De forma sincrônica, no trabalho vanguardista de Lima Barreto, surgiu uma linha. A linha de uma literatura “em trânsito”, suburbana, inquieta, rebelde. Uma literatura na qual nasceu uma linguagem prosaica, sagaz e inquieta, porém provida de uma direcionalidade firme (e extenuante). Deslocamento permanente entre o centro e a periferia, entre o coração e as extremidades. Oscilação constante e trágica do ser entre a necessidade da vida e a melancolia do desamparo.


Fontes

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto, 1881-1922

CORRÊA Felipe Botelho. “Lima Barreto em revista”, conferência na Academia Brasileira de Letras (https://www.academia.org.br/eventos/lima-barreto-em-revista)

SCHWARCZ M., Lilia. Lima Barreto: triste visionário


ROTEIRO E RESUMO

por Steve Berg





Letreiro-homenagem-premonição na parede do salão de entrada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, campus Praia Vermelha:
Um maluco, vendo-me passar com um livro debaixo do braço quando ia para o refeitório, disse:  – Isso aqui está virando colégio.  [A Noite, 15-1-20]

    O segundo dos meus filmes a lidar com alguns dos efeitos da primeira viagem de um monarca europeu à América do Sul (e, especificamente, com as duas consequências mais imediatas e duradouras de sua passagem pelo Rio de Janeiro em 1920) continua inacabado quase três anos após o início das filmagens por conta das dificuldades enfrentadas pela produção a partir da eclosão da pandemia.

    Do mesmo modo que o Mangue (nome pelo qual ficou conhecida a mais famosa zona de prostituição da cidade), a Universidade do Brasil foi criada para remover da trajetória física de Leopoldo e Elisabeth aquilo que o poder político preferiu que eles não vissem, a saber: as numerosas e onipresentes meretrizes (as mulatas, polacas e francesas celebradas e eternizadas em verso e nas artes plásticas pelos modernistas a partir dessa medida administrativa) e os doentes mentais que lotavam um dos maiores edifícios públicos da cidade – o Hospício Nacional dos Alienados, que se localizava, imenso, incontornável e orgulhoso no exato meio caminho da trajetória diária dos reis entre sua hospedagem no Consulado da Bélgica (situado na Avenida Atlântica) até o Centro da cidade, onde ocorriam a quase totalidade dos compromissos da agenda dos monarcas com o poder e as autoridades locais (palácios de governo, etc.). Um Rio de Janeiro para inglês (no caso, para belga) ver, que escamoteava a miséria e a loucura, sintomas de um país que nasceu e permanece enfermo até o momento atual.  

    Que a primeira universidade assim denominada do Brasil tivesse nascido por decreto (como sói acontecer com as coisas na Bruzundanga) dentro de um sanatório mental me pareceu uma ironia tão perfeita quanto significante, e dessa constatação surgiu o projeto de filmar um roteiro que incluísse trechos do final da vida trágica de Lima Barreto e do par de suas obras finais e póstumas, as mais cruas e dolorosas: o Diário do hospício e o Cemitério dos vivos.  

    Por coincidência, a primeira exibição pública de um trecho do referido filme se deu no xow.rumi no dia 2 de junho, que calhou de ser o Dia Internacional das Prostitutas. Desde 1976, a data faz referência à ocupação da Igreja de Saint Nizier, em Lyon, por prostitutas que protestavam contra a intensa repressão policial que sofriam, e o descaso na investigação de assassinatos de trabalhadoras. É o marco fundador do movimento por direitos das trabalhadoras sexuais no mundo.

Palavras-chave:
Abandono; alcoolismo; alienação; alienado; apagamento; Bruzundanga; China; corpos; dentes; depósito; dejetos; descaso; despejo; diário; escamoteamento; esgoto; esquecimento; extermínio; hipocrisia; hospício; hospital; humilhação; crioulo; medo; morte; mudez; mulato; negro; ocultamento; ópio; purgativo: separação; silêncio; superfícies lisas e enrugadas; universidade; terror; veneno; vigiar; vigilância.


Registro técnico:
Projeção de uma sequência de Para os reis da Bélgica (39’50”). Ambientação:  dazibao de desenhos de Antoine de Mena realizados em nanquim sobre papel branco inspirados por fotogramas do filme. Mise en scène: Stephen Berg. Fotografia e edição: André Scucato.




O acontecimento de um ato

Por Desirée Simões


    Para iniciar esta segunda escrita acerca de nosso projeto, acredito ser importante realizar uma breve contextualização do que tenho proposto como trabalho de produção escrita. Esta necessidade compareceu pelo fato de eu me colocar em primeira pessoa, na posição de quem realiza uma escrita cartográfica que pretende dar conta de acompanhar e descrever a processualidade do projeto.
    Minha intenção neste lugar é realizar um acompanhamento dos movimentos que tem permitido a elaboração de nossa proposta investigativa. Dentro disso, me posiciono na perspectiva de um sujeito implicado, que não entende que esta pesquisa, no que concerne a minha participação, apresenta bases neutras, uma vez que parte da ideia desta proposta de investigação surge a partir de inquietações e questões vividas e formuladas por mim enquanto trabalhadora das Redes de Atenção Psicossocial de dois municípios pertencentes ao Estado do Rio de Janeiro.referente ao segundo encontro do Grupo Eiras-Paracambi, a partir da minha perspectiva de pesquisadora-cartógrafa implicada e militante.
    O encontro 2 do grupo de pesquisa Eiras Paracambi, apesar de cuidadosamente pensado e planejado, aconteceu de um modo surpreendente.
    Após o Encontro 1, em nossas reuniões semanais, nos debruçamos a pensar sobre qual seria o tema que faria sentido para discussão do encontro seguinte. Ao longo de nossas discussões, decidimos que um dos grandes temas que deveríamos abordar logo no início do projeto era o tema de violência institucional e dominação dos corpos.
    A escolha por estes temas ocorreu por serem a violência (subjetiva e física) e a dominação algo intrínseco ao funcionamento das instituições totais. Para ficar mais nítido, uso como referencial teórico que me ajuda a sustentar as reflexões o livro “Manicômios, prisões e conventos” de Erving Goffman. Logo no início temos a abertura do texto com o capítulo “Mortificações do eu”, onde o autor faz uma descrição dos processos de violência subjetiva sofridos por quem dá entrada como paciente em um hospital psiquiátrico. Tais ataques à subjetividades começam, por exemplo, com a troca da roupa civil por um uniforme que desidentifica o sujeito de seus aspectos singulares, possibilitando sua entrada em um sistema de massificação, sustentada através das classificações nosológicas da psiquiatria.
    Outro aspecto que eu poderia considerar aqui, que se presentifica nas instituições totais psiquiátricas, é o rótulo a partir do qual o sujeito passa a viver: dentro da instituição é mais um “louco”, fora dela passa a ser alguém que para os olhos da sociedade não pertence mais. Acontece aqui um deslocamento no social, que coloca o sujeito internado no pior lado dentro de um sistema de polarização entre o normal e anormal. Sistema pobre, reducionista e violento, que deixa de considerar a vida em suas complexidades e as pessoas em suas singularidades.
    Além disso, os hospitais psiquiátricos são locais privilegiados para pensar no debate ocorrido no Encontro 1 entre alguns participantes, sobre se estando internado uma pessoa seria um sujeito ou um corpo. Sendo locais onde a lógica da exclusão opera de modo privilegiado, não parece surpreendente que sejam locais onde as pessoas que lá estão sejam objetificadas.  Há o percorrimento de um duro caminho, onde gradativamente os aspectos de “pessoa” vão sendo retirados, até a chegada no lugar de “objeto”. Objeto é aquilo que não tem vida, que movemos de um lado para o outro sem a necessidade de uma consulta para saber se as condições para sua existência estão boas ou ruins e que podemos deixar esquecido por longo tempo onde o deixamos.
    Dentro de toda esta discussão, começamos a pensar no que poderia ser o fio condutor de uma discussão como esta, de modo que nossa intenção enquanto coletivo era de que tentássemos sair do discurso da obviedade, que tornasse o assunto algo vivo.
    A questão “Como realizar um desvio?” se colocou de modo imperativo. A resposta a esta questão veio quando conversamos sobre o trabalho cinematográfico que vem sendo produzido por Steve Berg, cineasta, tradutor e intelectual, que sabíamos estar tratando sobre o tema das instituições e loucura a partir da leitura de obras de Lima Barreto, em especial do livro “Cemitério dos Vivos”. A possibilidade de ter algum fragmento da obra ou apenas o autor do trabalho em discussão conosco a partir de sua experiência com esta produção, se colocou para nós como de grande interesse. Isso, por vários motivos.
Dentre eles, destaco o fato de Lima Barreto ter sido um escritor que viveu à margem por vários motivos: tratava-se de um homem negro e pobre nascido antes da abolição jurídica da escravatura no Brasil em 1888, escritor que em vida não conseguiu o recohecimento e legitimidade merecidos à sua produção literária devido ao jogo das opressões raciais e sociais, e que em sua vida lidou com fenômenos psicóticos e alcoolismo, tendo sido por isso internado algumas vezes no antigo Hospital Nacional dos Alienados, em Botafogo.
    Tínhamos a possibilidade de trazer a discussão sobre violência e dominação, tratando de vários níveis de complexidade. Com isso, fizemos o convite ao Steve que prontamente nos respondeu que sim. A partir daí, começamos uma intensa pesquisa sobre a vida de Lima Barreto e leitura de seus textos. Para mim, se tornou algo de grande interesse entender quem foi o homem Lima Barreto e os caminhos que percorreu, para poder refletir sobre qual foi a incidência em sua trajetória de ter passado por internações, hoje entendidas como longas porque duraram meses, em hospital psiquiátrico.
    Outro ponto que gostaria de ressaltar é a possibilidade, a partir desta montagem temática, de acompanhamento das discussões dos recentes estudos decoloniais, onde há uma busca pelas vozes subalternas retratando aquilo que lhes é próprio. Os estudos decoloniais são aqueles em que há uma busca por estratégias que revelem os silenciamentos que foram impostos nas narrativas dos povos dominados pelos poderes opressores. A crueldade destes poderes opressores está na capacidade de banir estes discursos da consciência social.
    Uma vez feito o trabalho de construção intelectual, o passo seguinte foi a realização do encontro. Este foi feito a partir de uma montagem entre imagens pintadas em nanquim por Antoine em papel branco, colocadas em uma disposição especial na sala de realização do evento, de modo que permitisse a exibição de 30 min do filme de autoria de Steve entre e sobre as imagens. As cadeiras, foram dispostas de modo cuidadoso, tanto para que todos os participantes pudessem assistir ao filme quanto que no final uma roda de conversa pudesse acontecer.
    A partir daí aconteceu o que entendi como a produção de um ato, como algo que faz a marcação em um antes e um depois. Como algo que tem o poder de fazer uma ruptura e a partir daí produzir novos lugares.
    Digo isto porque o filme em si, além de ser extremamente instigante, trouxe uma apreensão do tema de modo pontiagudo e certeiro. Escolho a palavra pontiagudo porque produziu um incômodo por nos levar efetivamente a outro lugar. A mim levou para anos atrás, para o início do meu percurso profissional na saúde mental que se deu dentro de um hospital psiquiátrico em uma enfermaria de internação de homens.
    O método de produção das imagens, suas cores, sua iluminação me trouxe com vivacidade a lembrança daquela enfermaria onde podem ser internados 30 homens e os modos de a equipe do hospital de atuar naquele local. A iluminação me trouxe a “ronda”, que os técnicos em enfermagem realizavam aproximadamente de hora em hora, andando por toda enfermaria iluminando os rostos dos homens internados com lanternas de celular. Tal procedimento serve para a contagem de pacientes internados, para verificar se estavam efetivamente dormindo ou se havia a realização de qualquer tipo de prática não condizente com o lugar institucional.
    Saltou também aos olhos a “massa de corpos-objetos”, de olhares “haldolizados”, que estando depositada em um local, vai se misturando, se relacionando de modos não convencionais para as normatizações sociais. Além de saltar aos olhos produziu em mim, uma sensação de estranheza. Talvez sendo a maior delas o fato de que estas instituições são produção da sociedade, sustentadas pelo Estado, onde estão situadas. A dimensão de que o que produz incômodo e estranheza também é produzido por nós enquanto sociedade.
    E sobre a dimensão, que para mim foi da ordem do acontecimento de um ato, foi o surgimento espontâneo de um acalorado debate que tocou em muitos pontos, desde o nascimento e atual configuração da sociedade brasileira e suas engrenagens opressoras até a possibilidade de que os presentes falassem sobre seus lugares de desvio à norma enquanto sujeitos. Houve ali a possibilidade das diferentes singularidades presentes se expressarem, sem receios nem tabus.
    Ao final, a conversa dos participantes girava em torno de dizer que estavam impressionados com o que havia acontecido ali. Falavam sobre a beleza do encontro, sobre a qualidade das obras visuais e os impactos produzidos pela montagem e sobre uma sensação ainda não muito clara em sua razão de se estar saindo daquele momento diferentes do modo em que entraram. A beleza que existiu pela possibilidade e disponibilidade dos que ali estavam, o que nos inclui enquanto organizadores, de se desterritorializar e de produzir novos territórios de sustentação para as próprias vidas.
    Tendo estes elementos presentes e vivos dentro de mim, ansiosamente, espero pelo terceiro encontro.

Referências bibliográficas

1.    BARRETO, L. Diário do hospício; o cemitério dos vivos. Rio de Janeiro: Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Cultura, Departamento Geral de Documentação Cultural, 1988.
2.    CARVALHO, J. O olhar etnográfico e a voz subalterna. Horizontes Antropológicos, v. 7, n. 15, p. 107-147, jul. 2001.
3.    GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974. 312 p.
4.    ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2011.
5.    SCHWARCZ, L. MASP Palestra 2018. Lima Barreto: Triste Visionário. Youtube, 07 de abril de 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WhWYXEMnZhw.
 

A memória e o apagamento histórico

Jacqueline da Costa

    No centenário do autor Lima Barreto fica também a indagação de como produzimos memória no Brasil, bem como quais são as figuras e os acontecimentos que o país elege para nos servir de memória. O trabalho de construção de uma suposta história verdadeira, de uma única história é, ao mesmo tempo, a construção de um projeto político de apagamento. Essa história muitas vezes é contada por um grupo específico e que constituem um sistema sofisticado. Quantos “Limas Barretos” temos vivos aqui e agora, e que ainda assim com muito custo, irão produzir uma história apenas póstuma? O morto-vivo. A seleção sensível e precisa de quem pode contar nossas histórias. Aqui creio compreendermos a arte como possível caminho, estrada, que consegue acessar um passado e tornar palatável algumas histórias que possam ser direcionadas a quem se pertence. A quem interessa o esquecimento de histórias e memórias?
    De alguma forma, não só, mas também, a psicanálise nos oferece pistas desse trajeto quando supõe que se não podemos elaborar nossas memórias, retornar ao caminho de onde viemos, como consequência temos a produção de adoecimento psíquico. Se estamos imersos nessa cultura de “desmemorialização”, é sugestivo também, a partir de um olhar sensível, que temos caminhado mais na direção do que gera adoecimento do que uma que preza pela saúde. Como elaborar um passado sem memória? O que faz memória nesse país?
    A discussão sobre uma política de apagamento histórico, de um esquecimento produzido de forma sofisticada e consciente – o racismo -, está responsável, por consequência, pela inscrição de uma lógica da repetição. Temos uma parte da memória que foi apagada e uma parte da história que se repete. A repetição da violência, a repetição da desmemorialização, a repetição da desumanização. Em dado momento de nossa história, quando havíamos recém proclamado o regime da República no Brasil o então Ministro da Fazenda, Rui Barbosa, ordena a destruição completa de todos os arquivos que pudessem testemunhar e comprovar fatos ou quaisquer dados sobre o período de escravização no país. Em consequência, cria-se uma história monumental e escolhe-se os heróis que lhe convém. Quem escreve essa história? Estamos falando de mortes, em alguns âmbitos e não apenas o da carne.
    É uma aposta a utilização da linguagem artística na tentativa de elaborar essas histórias, não de forma a romantizar fatos tão contundentes, mas na tentativa de buscar em um passado seus pedaços de memória e tentar costurar esses fragmentos. Talvez a palavra empatia não seja suficiente para o tamanho do que precisa ser construído, mas algum caminho que a gente possa evitar ir na direção de uma lógica da repetição. Para que mais Limas Barretos estejam, em vida, sendo valorizados. E em morte façam memória.    



7.4.22

Encontro 1 / Apresentação geral

A inscrição de um desejo

por Desirée Simões

    Ao longo da minha caminhada, enquanto profissional do campo da Atenção Psicossocial, percorro diversas instituições voltadas aos cuidados de pessoas que apresentam sofrimentos psíquicos.
    Dos meus anos iniciais de trabalho, cinco aconteceram em um hospital psiquiátrico, onde atuei em uma “enfermaria masculina”, em um setor voltado para a recepção de crianças e adolescentes, no serviço de emergência, além da experiência como plantonista supervisora da instituição. Minha saída deste local para o desenvolvimento de um trabalho na rede substitutiva de atenção psicossocial de outro município foi a execução de uma ruptura de minha parte com o modelo asilar, manicomial onde até então eu estava inserida.
    Minha busca era não só por melhores condições de trabalho, no que se refere às questões trabalhistas, mas principalmente por uma lógica de trabalho onde não fosse realizada um assujeitamento de pessoas às normas disciplinares-manicomiais. Mesmo após cinco anos, não foi possível para mim normalizar e banalizar uma lógica de atenção à saúde que não tem uma implicação radical com o entendimento de que as pessoas que ali estão são efetivamente sujeitos, com o incentivo a produção de suas autonomias e com a luta pela inserção e manutenção destes sujeitos no laço social.
    Ao sair para ir trabalhar em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) no Rio de Janeiro, cujo mandato fundacional na legislação brasileira vigente é o de ser um serviço substitutivo ao hospital psiquiátrico, pude experimentar outras vivências que me parecem mais lógicas na produção do cuidado em saúde. Trabalhando em um serviço que se ocupa em olhar cada pessoa que entra pela porta como um sujeito e não como um corpo a ser deitado em um leito, pude atuar no eixo da desinstitucionalização. Este eixo do trabalho se constitui como verdadeira oposição ao manicômio.
    O trabalho consistia em ir até as instituições asilares e realizar um trabalho com os sujeitos lá colocados, com as equipes e com o território para possibilitar a saída das pessoas daquele espaço e inseri-las na vida em comunidade. Ao longo deste percurso, muitas vezes visitei diversos hospitais psiquiátricos e também os hospitais de custódia. Estes últimos, hoje em fase de desmonte, são instituições voltadas a receber pessoas que vivem com sofrimento psíquico e que cometeram algum ato infracional à lei e que, com isso, ingressaram no sistema penitenciário.
    Caminhando por estes lugares, muitos incômodos e estranhamentos me atravessaram e ainda atravessam. Não acreditava ser possível aquilo que meus olhos viam e que outros sentidos, tal como meu olfato, sentiam. Acúmulo de pessoas com suas subjetividades extirpadas, muitas vezes enclausuradas nestes espaços há mais de 20, 30, 40 anos, sendo “tratadas” basicamente com o uso de medicações psicotrópicas (contenções farmacológicas), contenções mecânicas (físicas) e em alguns casos histórias de uso de eletroconvulsoterapia (ECT) como primeiras escolhas de “tratamento”.
    Enquanto percorria estes espaços, um pensamento me ocorria. Havia um desejo de tratar das violências institucionais não apenas legitimadas, mas também realizadas pelo Estado no íntimo da existência de seus cidadãos. Tratar no sentido de falar, fazer vir à tona e com isso, produzir reflexão crítica.
    Seguindo a vida com estes elementos, após anos reencontrei Jacqueline, uma amiga com quem trabalhei há anos atrás em um Serviço Residencial Terapêutico (SRT), que é o serviço criado em território nacional voltado ao cuidado dos egressos de internações psiquiátricas de longa permanência. Nosso momento de interrupção deste trabalho, que teve relação com o encontro com as fragilidades estruturais do sistema de saúde brasileiro. Algo traumático. Encerrado o contrato de trabalho, mesmo existindo afeto entre nós, nos desencontramos.
    Ao nos reencontrarmos, a partir de Jacqueline me localizar em uma rede social, houve muito rapidamente a retomada da lembrança de nossa potência de trabalho conjunta. Pela primeira vez, falamos sobre o que naquela época não conseguimos elaborar. Falamos também dos caminhos realizados por cada uma de nós. Eu me mantive no campo da atenção psicossocial. Ela foi para o campo da produção audiovisual. Ali me parecia estar montado o cenário perfeito. Eu com minhas inquietações que se encontravam com as dela e ela com a experiência com a produção de imagens e sons. Compartilhei meu desejo, fiz uma proposta: vamos fazer um filme sobre um destes hospitais psiquiátricos e tratar daquilo que acontece diante dos olhos de uma sociedade e que ainda é pouco falado?
Para minha felicidade, ela aceitou.
    Juntas, falamos sobre aqueles que há anos atrás se constituíram como grandes e famosos hospitais psiquiátricos, hoje desmontados mas que ainda fazem parte do imaginário social nacional e que aparentemente não tiveram sua história preservada. Neste caminho, como moradoras da cidade do Rio de Janeiro, falamos sobre a antiga Casa de Saúde Dr. Eiras e sobre sua filial que se localizava no município de Paracambi, região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro. Estranhamos o fato de que apesar das grandes proporções que teve essa instituição e seu preponderante papel no cenário da psiquiatria nacional, muito pouco havia sido dito. Conhecíamos, à época, apenas uma tese de doutorado de uma profissional da Fundação Oswaldo Cruz, que se dedicou a tratar sobre o desmonte e fechamento deste local que já foi conhecido pela marca de ter sido o maior hospital psiquiátrico privado da América Latina, que em seus anos finais também mantinha convênio com o Sistema Único de Saúde. Um furo na memória, um produtor de angústia.
    Feito este caminho, no final de semana seguinte estávamos em Paracambi, rodeando as ruínas da antiga instituição. Enquanto passávamos pelos antigos portões, imaginávamos as violências que ocorreram ali. A exclusão de sujeitos da sociedade pelos mais variados motivos, as violências executadas sobre aquelas vidas. Tiramos fotos, fizemos filmagens, conversamos entre nós e com moradores da região. Nos afetamos. Voltamos para o Rio efervescentes em ideias e angústias.
    Como primeiros caminhos tínhamos como orientação o Seminário, livro X, A angústia do psicanalista Jacques Lacan, que é o objeto de um Cartel sustentado por nós em uma Escola de Psicanálise. Pensávamos também nas obras do filósofo Michel Foucault, e decidimos que a leitura de Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão deveria ser outro farol a nos iluminar o caminho. E apesar de começarmos este trabalho a partir da leitura de dois pensadores europeus, já tínhamos colocado desde o momento inicial da ideia, a necessidade de utilizar as produções científicas e literárias nacionais para discutir o tema. Já tínhamos o entendimento que ao falar dos mecanismos institucionais manicomiais brasileiros, nos aproximávamos também de feridas que se constituíram desde a fundação do país, tais como as violências, exílios, exclusões sociais, racismo e apagamento histórico, por exemplo.
    Outra ponto era a clareza de que somos pessoas interessadas na investigação daquilo que nos toca e não artistas e tão pouco cineastas. Então, como realizar?
    Esta resposta veio pouco tempo depois, quando ocorreu a entrada de Antoine nos estudos compartilhados, online, de Michel Foucault. Ao nos aproximarmos e irmos estudando o material juntos e devido a formação deste como historiador, cineasta e artista visual, um sentido se deu. Nossa troca, o interessante encontro de nossas subjetividades e funcionamento como um grupo logo compareceu e para o qual não pudemos deixar de olhar.
    A partir desta configuração de grupo de trabalho montada, começamos efetivamente a trabalhar. Até o presente momento percorremos arquivos públicos em grandes instituições tal como a Biblioteca Nacional em busca de documentos que tratam desta instituição, fizemos pesquisas utilizando bancos de informações virtuais, encontramos e escutamos pessoas que atuaram no desmonte institucional, nos articulamos com a Coordenação Estadual de Atenção Psicossocial, conversamos com artistas e intelectuais. Percorrendo este caminho, pudemos também revistar a ideia inicial de produção de filme. Entendemos que muito se pode fazer, na lógica de um trabalho investigativo desde a abertura de debates públicos através de rodas de conversa, resgate histórico e documental, montagens expositivas, escrita de textos, e o que mais se mostrar interessante. As possibilidades são diversas, e a proposição atual é a liberação dos produtos que forem se constituindo ao longo do caminho de pesquisa.
    Atualmente estamos em vias de entrar em contato com pessoas que trabalharam na instituição durante seu funcionamento pleno, com outros participantes do grupo de trabalho que executou o desmonte institucional, com gestores estaduais e municipais, além da troca com intelectuais e artistas que pensem sobre os diversos temas que compõem esta pesquisa. Com isto, temos construído a compreensão de que nosso trabalho caminhará por vários lugares e que dentro disso, pode ser até que vire um filme.
    Muito ainda está por vir. 


Um re-corte de Brasil-Rio de Janeiro-Paracambi

por Jacqueline da Costa

    Para contar a história da Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi entendemos ser necessário ampliar nossa visão para abarcar um contexto anterior da construção da instituição, na tentativa de recolher um contexto de tempo-espaço na história político-sócio-cultural da cidade do Rio de Janeiro, bem como do país. Foi necessário considerarmos um recorte.
    A história fragmentada que desejamos remontar, começa na fundação da casa sede – Casa de Saúde Dr. Eiras -, no ano de 1865, na época localizada no bairro de Botafogo, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. No âmbito nacional, o país enfrentava um regime imperial governado por Dom Pedro II. No mesmo ano deu-se início à Guerra do Paraguai, que viria a durar cinco anos e já fazia quinze anos que a Lei Eusébio de Queirós havia decretado a proibição do tráfico de escravizados.
    Foi nesse solo que se erigiu a fundação da sede da Casa de Saúde Dr. Eiras, onde hoje é a Rua Assunção no bairro de Botafogo. Empreendimento de Manuel Joaquim Fernandes Eiras, um homem público com certo reconhecimento na cidade do Rio de Janeiro à sua época. Também um médico, empreendedor, administrador e, não menos importante, o médico-amigo-pessoal de Princesa Isabel. Inicialmente a Casa de Saúde Dr. Eiras é fundada como uma casa de banhos, realizando tratamentos hidroterápicos, não havendo nenhuma relação com a psiquiatria que, diga-se de passagem, estava há quase cem anos de distância da sua consolidação como prática especializada da medicina.
    A cidade, no entanto, sofria muitas influências de referências europeias que em meados do século XIX a medicina já se mostrava mais sofisticada como forma tecnológica da domesticação e, porque não dizer, mortificação de corpos a partir das instituições totais. Não demora muito para que Manoel Eiras seja perspicaz em acompanhar as tecnologias europeias e promover a Casa de Saúde Dr. Eiras de casa de banhos à uma instituição psiquiátrica. Em alinhamento com essa notória alteração de paradigma em relação ao entendimento sobre saúde – o que é saúde? – a referida instituição que se tornou um hospital psiquiátrico privado, inicia sua carreira com uma equipe de médicos-especialistas renomados (ainda não psiquiatras), com um arsenal luxuoso e exclusividade no tratamento aos então recém compreendidos como loucos. É importante ressaltar que é apenas no ano de 1879 que a psiquiatria é regulamentada como uma formação acadêmica especializada da medicina.
  Avançamos cem anos e a relação da Casa sede (em Botafogo) com a filial Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi se dá no contexto de necessidade da transferência dos corpos entendidos agora como “crônicos” – nome que se deu com o entendimento de que não havia trabalho possível para a ressocialização daquele corpo. É o morto-vivo. O que é saúde? A filial de Paracambi é fundada na década de 1960 e, portanto, com o dever de recepção desses corpos. Acredito podermos considerar ser um repositório de corpos. Paracambi é um município no interior do estado que fica a menos de cem quilômetros do centro do Rio de Janeiro. Na década de 1950 se dá o apogeu do desenvolvimento industrial da cidade de Paracambi que se constituiu com referência nas ilhas operárias inglesas do século XIX. Isso quer dizer que a vida de uma população inteira era gerida por uma lógica operária desde o convívio social até a própria possibilidade de subsistência como a geração de empregos, a oportunidade de oferta de lazer, bem como a conduta dos moradores-operários. Relata-se que a cidade inteira acordava com o alarme que sinalizava o início do trabalho das fábricas, seus intervalos e retomadas. Na época se enfrentava o regime da ditadura militar no país e a instituição foi fundada com o aval deste governo. O proprietário da instituição era o então Ministro da Saúde e da Previdência Social no Brasil.
    Na década de 1970 a Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi atingiu seu momento como maior empregador local, momento inclusive em que a cidade foi nomeada como “cidade dos loucos” – uma lembrança que remete diretamente ao processo da cidade de Barbacena, em Minas Gerais. Na referida década enfrentou-se um processo de fechamento em massa das indústrias têxtil e siderúrgica, e como consequência iniciou-se um processo de psiquiatrização da população desempregada – não só como doentes com necessidade de assistência na instituição, mas também como entrada na carreira da psiquiatria, isto é, como trabalhadores da instituição. Essa situação faz com que a história do instituto seja mais complexa no momento em que se torna uma instituição total que exercia suas funções para além de apenas uma instituição de saúde, se é que assim podemos considerá-la.
    A possibilidade de implantação de políticas públicas e a legislação das portarias que tem como princípio regulamentar e fiscalizar as instituições da cidade, com o intuito de preservar e se fazer exercer as práticas de cuidado em saúde, tem sua consolidação no país apenas após a Constituição da República Federativa do Brasil em 1988. Na década de 1990 já estavam sendo, não apenas construídas, mas também constituídas outras formas de prática de cuidado com dispositivos que denominamos como substitutivos. Estes, substituiriam as instituições totais para outras instituições menores cada vez mais especializadas e organizadas em um formato do que chamamos hoje de rede. Esse novo formato me é caro no sentido de compreender a saúde em níveis de complexidade, o que parece contemplar em alguma instância o entendimento de que os sujeitos são complexos e necessitam de várias intersecções no âmbito do cuidado. Neste momento, portanto, é possível observarmos na cidade a abertura desses novos serviços especializados e, dentre estes, destacaremos os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Hospitais Dia e Residências Terapêuticas.   
    O processo de fechamento da instituição Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi se inicia a partir das denúncias de maus tratos no momento ápice em que ela chegou a ter 2500 leitos de internação com sujeitos (ditos) crônicos. As denúncias promoveram uma auditoria especializada do Ministério da Saúde e decretou-se, em um primeiro momento, a interrupção de novas internações, o cumprimento de um plano de reinserção social dos pacientes internos, bem como a avaliação de óbitos e revisão de altas. Vale dizer que a compreensão de reinserção social era a de que nenhum sujeito deveria ter o fim de sua vida em uma instituição psiquiátrica largado à própria sorte. O morto-vivo. Àqueles que ainda havia família remanescente tentava-se um retorno ao seio familiar, aos que não tinham mais essa possibilidade era feito um trabalho para inserção desse sujeito em um Serviço Residencial Terapêutico, realizando seu tratamento e acompanhamento de cuidado em liberdade.
    Em 2009 o Ministério Público do Rio de Janeiro ordena o fechamento total da instituição e é apenas em 2012 que o último interno é transferido da mesma. Atualmente, no ano passado, eu e Desirée – parceira deste grupo de pesquisa – fizemos um trabalho de campo na cidade de Paracambi e descobrimos a partir do contato com moradores da região que o perito em que se encontra, ainda, as ruínas da instituição foi loteado e está à venda para a construção de um condomínio de casas residenciais privadas.
    É sob esse solo que desejamos remontar uma história que está fragmentada, como a montagem de um quebra cabeça. Desejo esse de compreender, também, por qual motivo essa história estava sendo esquecida e que apenas fortalece a prática de apagamento de narrativas, de memórias, de percursos e de corpos que em algum momento estiveram vivos aqui. O recorte feito para a imersão dessa pesquisa, me parece, ser um pequeno fragmento de como são tratadas as memórias desse país, memórias que pretendemos juntar os cacos espalhados para trazer debate.


"O rio dos macacos"

por Antoine de Mena

    Em língua tupi, em língua indígena, Paracambi designa "o rio dos macacos", "o rio ramificado". Bem antes de ter sido conhecida pela Casa de Saúde Dr. Eiras, Paracambi existiu, sim, sem mesmo ter sido "descoberta". A sua história não se inicia com a concessão das primeiras sesmarias, no contexto da ampliação do "Caminho Novo" em direção de Minas Gerais, no inicio do século XVIII. O que encontra a sua "origem" neste momento é a própria história da colonização, da evangelização e da exploração agrícola escravocrata da Baixada Fluminense.
    Paracambi foi posse da Companhia de Jesus até 1759, ano em que os Inacianos foram expulsos do Brasil e os seus domínios confiscados e reintegrados nos bens da Coroa Portuguesa. Posteriormente, durante todo o chamado "ciclo do café", iniciado em meados do século XIX, as terras do município de Paracambi foram amplamente exploradas, contribuindo na derrubada massiva da mata atlântica a favor do plantio do café.
    Com a chegada da Estrada de Ferro D. Pedro II e a instalação progressiva de um complexo têxtil industrial de alcance nacional, a região experimentou as mais variadas mutações na sua composição sociológica, assim como na exploração da mão de obra, no marco de uma legalidade incerta porém teoricamente exenta de escravidão. E preciso sublinhear e lembrar que a abertura em 1963 da Casa de Saúde Dr. Eiras, filial Paracambi, e a consequente conformação de uma "indústria manicomial" local, se situam nesse médio e largo prazo histórico.
    
    Quando fui abordado pela primeira vez pela Desirée e pela Jacqueline, ouvi o relato de uma instituição que parecia justamente estar escapando, estar fugindo desta compreensão historica de médio e largo prazo. O convite me foi feito para me unir ao projeto, e a minha reposta foi imediatamente afirmativa. A Casa de Saúde Dr. Eiras-Paracambi estava ali, exigindo a nossa atenção plena, a nossa probidade intelectual, também, nos colocando frente a imperativa necessidade de "construir" arquivos, de contradizer as lógicas mortíferas do esquecimento e de tecer os primeiros fios do necessário relato deste lugar tão sintomático da história (manicomial) brasileira.
    Integrei portanto o projeto como cineasta, como artista-pesquisador. E começamos a trabalhar, com a ideia original das minhas parceiras de elaborarmos juntos, com o passar do tempo e do nossos percursos, um filme documentário. No marco das nossas trocas, este desejo inicial ficou, mas enriquecido pela ideia de render público o campo das nossas pesquisas através de encontros regulares, de falas públicas, com a participação de convidados e a apresentação de objetos, instalações, intervenções... de elementos e artefatos para tentar responder, no fundo, à uma mesma pergunta: quê linguagem é preciso inventar para poder "escrever" a história da Casa de Saúde Dr. Eiras-Paracambi ?
    A pulsão genealógica é o gesto coletivo seminal deste projeto. Uma pulsão que atinge o campo do conhecimento histórico como o campo das artes. Olhar e analisar em detalhe o estabelecimento e o devir da Casa de Saúde Dr. Eiras-Paracambi, sim, mas nunca deixando de perceber e sem cair em construções teleológicas, o que se tece e o que atravessa os séculos, as muitas camadas, torções e reconfigurações constantes que constituem os fios de uma história onde corpos são hierarquizados, presos, e subjetividades subjugadas. Onde a dominação dos uns sobre os outros é permanentemente transformada e reconduzida.


    No dia 7 de abril de 2022, no espaço xow.rumi, na Glória (RJ), apresentamos pela primeira vez em público o nosso grupo de pesquisa. No marco deste encontro, aconteceram falas introdutórias, que aparecem agora neste blog de forma sintetizadas e passadas pela escrita. Apresentamos também uma instalação, composta por dois elementos pendurados numa das paredes do local de apresentação : um vídeo (2'29'', mudo) e um conjunto de seis folhas (A4).


    O vídeo, projetado em loop, é composto por um conjunto de planos editados integralmente, na ordem em que eles foram filmados. Neles pode ser observado a entrada principal da Casa de Saúde Dr. Eiras-Paracambi, assim como a estação de trem inaugurada no lugar em 1964. O espaço é vazio de toda presença humana. O título do vídeo é Angústia. As imagens deste espaço limiar foram filmadas por Jacqueline e Desirée numa das primeiras visitas que elas fizeram in situ.


    As 6 folhas mostram três sequências. A primeira sequência é um plano prospectivo, datado de 1863, da estrada de ferro de D. Pedro II, cujas linhas passam notoriamente pelo município de Paracambi.
    A segunda sequência, composta por 4 folhas (7 fotografias), mostra o ex-Presidente de República Ernesto Geisel, acompanhado por outras autoridades, visitando em 1976 a Casa de Saúde Dr. Eiras-Botafogo.





       Finalmente, a última sequência consiste, numa só folha, nos créditos das imagens, assim como num conjunto de indícios cronológicos. Indícios que não tem outra função que essa mesma: serem indícios de uma construção em curso.