2.6.22

Encontro 2 / Violência institucional e dominação dos corpos. Para os reis da Bélgica: Lima Barreto no Hospital Nacional dos Alienados

Firmeza e labilidade da linha, entre o especular e o espetacular

por Antoine de Mena

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    Cem anos após sua morte, Lima Barreto e a sua prosa seguem ressoando como uma voz brasileira absolutamente contemporânea. Na vida e na obra do jornalista e escritor carioca, dois elementos foram fundacionais e reiterados: a humilhação, decorrente da experiência da raça como marcador da diferença social; e a frustração, começando por aquela de não poder testemunhar os valores de igualdade da abolição e da República sendo postos em prática na vida política e social do país.

    Neste contexto existencial de recondução das injustiças e das iniquidades passadas apesar da mudança de regime, Lima Barreto foi, seguindo as palavras de seu primeiro biógrafo Francisco de Assis Barbosa, um dos poucos da sua geração em “combater o escapismo decorativo e aristocrático dos que entendiam que cultura devia ser privilégio de uns poucos eleitos e não o bem comum de todo o povo”. Nesta perspectiva, Lima Barreto defendeu uma literatura combatente, se lançando numa cruzada literária contra as ideias, as práticas elitistas e as mentalidades que reproduziam o regime colonial de dependência, fidelismo e favores.

    Por um lado, a escrita de Lima Barreto apresenta elementos de vanguarda: o minimalismo de sua prosa, o seu estilo direto, a precisão descritiva da sua frase, a sua atitude anti-literária... Mas por outro lado, a radicalidade de seu compromisso social, a sua escolha de levar para frente uma arte sensível e acessível às massas, testemunham precisamente da impossibilidade do encontro do escritor com as vanguardas. Essas mesmas vanguardas modernistas que encontravam na obra dele aquilo que mais desejavam: uma escrita livre de academicismos, organicamente articulada com a língua falada contemporânea.

    Esta condição de Lima Barreto do habitar socialmente e literariamente o lugar da labilidade, do deslocamento, do desconforto, da passagem, do solilóquio frente às mazelas existenciais e, em soma, da reformulação permanente e singular da linguagem, seja talvez a marca distintiva da sua obra e o selo trágico da sua intemporalidade.


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    A proposição artística do cineasta e amigo Steve Berg me chegou na forma de um vídeo, de uma sequência de 39 minutos extraída de uma adaptação ficcional cinematográfica livre feita a partir do romance inacabado de Lima Barreto, o Cemitério dos vivos.

    Acompanhadas por uma banda sonora, um excerto de L'Île Re-Sonante, composição eletroacústica de Éliane Radigue, as imagens apresentam uma densidade plástica pouco comum. Passadas por filtros inesperados, elas adquirem uma profundidade que transmuta a sua natureza de bidimensionais para escultóricas.

 






    Confrontado com corpos alienados cujos bordos são luminescentes e as asperidades, porosidades e pilosidades hiper saturadas, cromaticamente aberrantes, tridimensionais, o nosso olhar é duplamente convocado, no lugar de uma percepção flutuante e de uma ininterrupta inquietação. A problemática é aqui a seguinte: entre os possíveis especulares e espectaculares que comparecem em toda tentativa de representação de subjetividades desamparadas, quebradas, alienadas, como sustentar a linha ética da visão artística?

    Os elementos de resposta foram dados, num primeiro instante, pela matéria fílmica mesma, e num segundo tempo, pelas características físicas do espaço de apresentação do trabalho.




                             

     

    As linhas dos corpos, as linhas dos rostos, as linhas das singularidades geraram uma série de dez desenhos, feitos a partir das imagens do vídeo. Simples, reduzidos a linhas cruas e despojadas de todo artifício.

    Na matéria fílmica, de novo, uma personagem brandindo um espelho dirigido para sua própria cara mas isento de todo reflexo, colocou o eixo da interrogação e da disposição física no espaço expositivo.

    O que olhamos quando olhamos um corpo alienado ? Para onde é direcionado o nosso olhar? O que que este olhar diz da possibilidade/impossibilidade do encontro com nós mesmos no rosto alheio ?

    A partir daí, a geometria da sala suscitou a disposição dos desenhos como extensões da imagem vídeo, e suscitou também a colocação de dois desses desenhos no eixo geométrico da superfície de projeção do vídeo. Obrigando assim o olhar a incorporar uma direcionalidade lateral, diagonal, indireta. E materializando também a impossibilidade do olhar frontal, a impossibilidade da coincidência com um mesmo.






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    As vanguardas do início do século XX investigaram e exploraram o conceito da linha, colocando ela num plano renovado de autonomia e sentido. De forma sincrônica, no trabalho vanguardista de Lima Barreto, surgiu uma linha. A linha de uma literatura “em trânsito”, suburbana, inquieta, rebelde. Uma literatura na qual nasceu uma linguagem prosaica, sagaz e inquieta, porém provida de uma direcionalidade firme (e extenuante). Deslocamento permanente entre o centro e a periferia, entre o coração e as extremidades. Oscilação constante e trágica do ser entre a necessidade da vida e a melancolia do desamparo.


Fontes

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto, 1881-1922

CORRÊA Felipe Botelho. “Lima Barreto em revista”, conferência na Academia Brasileira de Letras (https://www.academia.org.br/eventos/lima-barreto-em-revista)

SCHWARCZ M., Lilia. Lima Barreto: triste visionário


ROTEIRO E RESUMO

por Steve Berg





Letreiro-homenagem-premonição na parede do salão de entrada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, campus Praia Vermelha:
Um maluco, vendo-me passar com um livro debaixo do braço quando ia para o refeitório, disse:  – Isso aqui está virando colégio.  [A Noite, 15-1-20]

    O segundo dos meus filmes a lidar com alguns dos efeitos da primeira viagem de um monarca europeu à América do Sul (e, especificamente, com as duas consequências mais imediatas e duradouras de sua passagem pelo Rio de Janeiro em 1920) continua inacabado quase três anos após o início das filmagens por conta das dificuldades enfrentadas pela produção a partir da eclosão da pandemia.

    Do mesmo modo que o Mangue (nome pelo qual ficou conhecida a mais famosa zona de prostituição da cidade), a Universidade do Brasil foi criada para remover da trajetória física de Leopoldo e Elisabeth aquilo que o poder político preferiu que eles não vissem, a saber: as numerosas e onipresentes meretrizes (as mulatas, polacas e francesas celebradas e eternizadas em verso e nas artes plásticas pelos modernistas a partir dessa medida administrativa) e os doentes mentais que lotavam um dos maiores edifícios públicos da cidade – o Hospício Nacional dos Alienados, que se localizava, imenso, incontornável e orgulhoso no exato meio caminho da trajetória diária dos reis entre sua hospedagem no Consulado da Bélgica (situado na Avenida Atlântica) até o Centro da cidade, onde ocorriam a quase totalidade dos compromissos da agenda dos monarcas com o poder e as autoridades locais (palácios de governo, etc.). Um Rio de Janeiro para inglês (no caso, para belga) ver, que escamoteava a miséria e a loucura, sintomas de um país que nasceu e permanece enfermo até o momento atual.  

    Que a primeira universidade assim denominada do Brasil tivesse nascido por decreto (como sói acontecer com as coisas na Bruzundanga) dentro de um sanatório mental me pareceu uma ironia tão perfeita quanto significante, e dessa constatação surgiu o projeto de filmar um roteiro que incluísse trechos do final da vida trágica de Lima Barreto e do par de suas obras finais e póstumas, as mais cruas e dolorosas: o Diário do hospício e o Cemitério dos vivos.  

    Por coincidência, a primeira exibição pública de um trecho do referido filme se deu no xow.rumi no dia 2 de junho, que calhou de ser o Dia Internacional das Prostitutas. Desde 1976, a data faz referência à ocupação da Igreja de Saint Nizier, em Lyon, por prostitutas que protestavam contra a intensa repressão policial que sofriam, e o descaso na investigação de assassinatos de trabalhadoras. É o marco fundador do movimento por direitos das trabalhadoras sexuais no mundo.

Palavras-chave:
Abandono; alcoolismo; alienação; alienado; apagamento; Bruzundanga; China; corpos; dentes; depósito; dejetos; descaso; despejo; diário; escamoteamento; esgoto; esquecimento; extermínio; hipocrisia; hospício; hospital; humilhação; crioulo; medo; morte; mudez; mulato; negro; ocultamento; ópio; purgativo: separação; silêncio; superfícies lisas e enrugadas; universidade; terror; veneno; vigiar; vigilância.


Registro técnico:
Projeção de uma sequência de Para os reis da Bélgica (39’50”). Ambientação:  dazibao de desenhos de Antoine de Mena realizados em nanquim sobre papel branco inspirados por fotogramas do filme. Mise en scène: Stephen Berg. Fotografia e edição: André Scucato.




O acontecimento de um ato

Por Desirée Simões


    Para iniciar esta segunda escrita acerca de nosso projeto, acredito ser importante realizar uma breve contextualização do que tenho proposto como trabalho de produção escrita. Esta necessidade compareceu pelo fato de eu me colocar em primeira pessoa, na posição de quem realiza uma escrita cartográfica que pretende dar conta de acompanhar e descrever a processualidade do projeto.
    Minha intenção neste lugar é realizar um acompanhamento dos movimentos que tem permitido a elaboração de nossa proposta investigativa. Dentro disso, me posiciono na perspectiva de um sujeito implicado, que não entende que esta pesquisa, no que concerne a minha participação, apresenta bases neutras, uma vez que parte da ideia desta proposta de investigação surge a partir de inquietações e questões vividas e formuladas por mim enquanto trabalhadora das Redes de Atenção Psicossocial de dois municípios pertencentes ao Estado do Rio de Janeiro.referente ao segundo encontro do Grupo Eiras-Paracambi, a partir da minha perspectiva de pesquisadora-cartógrafa implicada e militante.
    O encontro 2 do grupo de pesquisa Eiras Paracambi, apesar de cuidadosamente pensado e planejado, aconteceu de um modo surpreendente.
    Após o Encontro 1, em nossas reuniões semanais, nos debruçamos a pensar sobre qual seria o tema que faria sentido para discussão do encontro seguinte. Ao longo de nossas discussões, decidimos que um dos grandes temas que deveríamos abordar logo no início do projeto era o tema de violência institucional e dominação dos corpos.
    A escolha por estes temas ocorreu por serem a violência (subjetiva e física) e a dominação algo intrínseco ao funcionamento das instituições totais. Para ficar mais nítido, uso como referencial teórico que me ajuda a sustentar as reflexões o livro “Manicômios, prisões e conventos” de Erving Goffman. Logo no início temos a abertura do texto com o capítulo “Mortificações do eu”, onde o autor faz uma descrição dos processos de violência subjetiva sofridos por quem dá entrada como paciente em um hospital psiquiátrico. Tais ataques à subjetividades começam, por exemplo, com a troca da roupa civil por um uniforme que desidentifica o sujeito de seus aspectos singulares, possibilitando sua entrada em um sistema de massificação, sustentada através das classificações nosológicas da psiquiatria.
    Outro aspecto que eu poderia considerar aqui, que se presentifica nas instituições totais psiquiátricas, é o rótulo a partir do qual o sujeito passa a viver: dentro da instituição é mais um “louco”, fora dela passa a ser alguém que para os olhos da sociedade não pertence mais. Acontece aqui um deslocamento no social, que coloca o sujeito internado no pior lado dentro de um sistema de polarização entre o normal e anormal. Sistema pobre, reducionista e violento, que deixa de considerar a vida em suas complexidades e as pessoas em suas singularidades.
    Além disso, os hospitais psiquiátricos são locais privilegiados para pensar no debate ocorrido no Encontro 1 entre alguns participantes, sobre se estando internado uma pessoa seria um sujeito ou um corpo. Sendo locais onde a lógica da exclusão opera de modo privilegiado, não parece surpreendente que sejam locais onde as pessoas que lá estão sejam objetificadas.  Há o percorrimento de um duro caminho, onde gradativamente os aspectos de “pessoa” vão sendo retirados, até a chegada no lugar de “objeto”. Objeto é aquilo que não tem vida, que movemos de um lado para o outro sem a necessidade de uma consulta para saber se as condições para sua existência estão boas ou ruins e que podemos deixar esquecido por longo tempo onde o deixamos.
    Dentro de toda esta discussão, começamos a pensar no que poderia ser o fio condutor de uma discussão como esta, de modo que nossa intenção enquanto coletivo era de que tentássemos sair do discurso da obviedade, que tornasse o assunto algo vivo.
    A questão “Como realizar um desvio?” se colocou de modo imperativo. A resposta a esta questão veio quando conversamos sobre o trabalho cinematográfico que vem sendo produzido por Steve Berg, cineasta, tradutor e intelectual, que sabíamos estar tratando sobre o tema das instituições e loucura a partir da leitura de obras de Lima Barreto, em especial do livro “Cemitério dos Vivos”. A possibilidade de ter algum fragmento da obra ou apenas o autor do trabalho em discussão conosco a partir de sua experiência com esta produção, se colocou para nós como de grande interesse. Isso, por vários motivos.
Dentre eles, destaco o fato de Lima Barreto ter sido um escritor que viveu à margem por vários motivos: tratava-se de um homem negro e pobre nascido antes da abolição jurídica da escravatura no Brasil em 1888, escritor que em vida não conseguiu o recohecimento e legitimidade merecidos à sua produção literária devido ao jogo das opressões raciais e sociais, e que em sua vida lidou com fenômenos psicóticos e alcoolismo, tendo sido por isso internado algumas vezes no antigo Hospital Nacional dos Alienados, em Botafogo.
    Tínhamos a possibilidade de trazer a discussão sobre violência e dominação, tratando de vários níveis de complexidade. Com isso, fizemos o convite ao Steve que prontamente nos respondeu que sim. A partir daí, começamos uma intensa pesquisa sobre a vida de Lima Barreto e leitura de seus textos. Para mim, se tornou algo de grande interesse entender quem foi o homem Lima Barreto e os caminhos que percorreu, para poder refletir sobre qual foi a incidência em sua trajetória de ter passado por internações, hoje entendidas como longas porque duraram meses, em hospital psiquiátrico.
    Outro ponto que gostaria de ressaltar é a possibilidade, a partir desta montagem temática, de acompanhamento das discussões dos recentes estudos decoloniais, onde há uma busca pelas vozes subalternas retratando aquilo que lhes é próprio. Os estudos decoloniais são aqueles em que há uma busca por estratégias que revelem os silenciamentos que foram impostos nas narrativas dos povos dominados pelos poderes opressores. A crueldade destes poderes opressores está na capacidade de banir estes discursos da consciência social.
    Uma vez feito o trabalho de construção intelectual, o passo seguinte foi a realização do encontro. Este foi feito a partir de uma montagem entre imagens pintadas em nanquim por Antoine em papel branco, colocadas em uma disposição especial na sala de realização do evento, de modo que permitisse a exibição de 30 min do filme de autoria de Steve entre e sobre as imagens. As cadeiras, foram dispostas de modo cuidadoso, tanto para que todos os participantes pudessem assistir ao filme quanto que no final uma roda de conversa pudesse acontecer.
    A partir daí aconteceu o que entendi como a produção de um ato, como algo que faz a marcação em um antes e um depois. Como algo que tem o poder de fazer uma ruptura e a partir daí produzir novos lugares.
    Digo isto porque o filme em si, além de ser extremamente instigante, trouxe uma apreensão do tema de modo pontiagudo e certeiro. Escolho a palavra pontiagudo porque produziu um incômodo por nos levar efetivamente a outro lugar. A mim levou para anos atrás, para o início do meu percurso profissional na saúde mental que se deu dentro de um hospital psiquiátrico em uma enfermaria de internação de homens.
    O método de produção das imagens, suas cores, sua iluminação me trouxe com vivacidade a lembrança daquela enfermaria onde podem ser internados 30 homens e os modos de a equipe do hospital de atuar naquele local. A iluminação me trouxe a “ronda”, que os técnicos em enfermagem realizavam aproximadamente de hora em hora, andando por toda enfermaria iluminando os rostos dos homens internados com lanternas de celular. Tal procedimento serve para a contagem de pacientes internados, para verificar se estavam efetivamente dormindo ou se havia a realização de qualquer tipo de prática não condizente com o lugar institucional.
    Saltou também aos olhos a “massa de corpos-objetos”, de olhares “haldolizados”, que estando depositada em um local, vai se misturando, se relacionando de modos não convencionais para as normatizações sociais. Além de saltar aos olhos produziu em mim, uma sensação de estranheza. Talvez sendo a maior delas o fato de que estas instituições são produção da sociedade, sustentadas pelo Estado, onde estão situadas. A dimensão de que o que produz incômodo e estranheza também é produzido por nós enquanto sociedade.
    E sobre a dimensão, que para mim foi da ordem do acontecimento de um ato, foi o surgimento espontâneo de um acalorado debate que tocou em muitos pontos, desde o nascimento e atual configuração da sociedade brasileira e suas engrenagens opressoras até a possibilidade de que os presentes falassem sobre seus lugares de desvio à norma enquanto sujeitos. Houve ali a possibilidade das diferentes singularidades presentes se expressarem, sem receios nem tabus.
    Ao final, a conversa dos participantes girava em torno de dizer que estavam impressionados com o que havia acontecido ali. Falavam sobre a beleza do encontro, sobre a qualidade das obras visuais e os impactos produzidos pela montagem e sobre uma sensação ainda não muito clara em sua razão de se estar saindo daquele momento diferentes do modo em que entraram. A beleza que existiu pela possibilidade e disponibilidade dos que ali estavam, o que nos inclui enquanto organizadores, de se desterritorializar e de produzir novos territórios de sustentação para as próprias vidas.
    Tendo estes elementos presentes e vivos dentro de mim, ansiosamente, espero pelo terceiro encontro.

Referências bibliográficas

1.    BARRETO, L. Diário do hospício; o cemitério dos vivos. Rio de Janeiro: Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Cultura, Departamento Geral de Documentação Cultural, 1988.
2.    CARVALHO, J. O olhar etnográfico e a voz subalterna. Horizontes Antropológicos, v. 7, n. 15, p. 107-147, jul. 2001.
3.    GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974. 312 p.
4.    ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2011.
5.    SCHWARCZ, L. MASP Palestra 2018. Lima Barreto: Triste Visionário. Youtube, 07 de abril de 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WhWYXEMnZhw.
 

A memória e o apagamento histórico

Jacqueline da Costa

    No centenário do autor Lima Barreto fica também a indagação de como produzimos memória no Brasil, bem como quais são as figuras e os acontecimentos que o país elege para nos servir de memória. O trabalho de construção de uma suposta história verdadeira, de uma única história é, ao mesmo tempo, a construção de um projeto político de apagamento. Essa história muitas vezes é contada por um grupo específico e que constituem um sistema sofisticado. Quantos “Limas Barretos” temos vivos aqui e agora, e que ainda assim com muito custo, irão produzir uma história apenas póstuma? O morto-vivo. A seleção sensível e precisa de quem pode contar nossas histórias. Aqui creio compreendermos a arte como possível caminho, estrada, que consegue acessar um passado e tornar palatável algumas histórias que possam ser direcionadas a quem se pertence. A quem interessa o esquecimento de histórias e memórias?
    De alguma forma, não só, mas também, a psicanálise nos oferece pistas desse trajeto quando supõe que se não podemos elaborar nossas memórias, retornar ao caminho de onde viemos, como consequência temos a produção de adoecimento psíquico. Se estamos imersos nessa cultura de “desmemorialização”, é sugestivo também, a partir de um olhar sensível, que temos caminhado mais na direção do que gera adoecimento do que uma que preza pela saúde. Como elaborar um passado sem memória? O que faz memória nesse país?
    A discussão sobre uma política de apagamento histórico, de um esquecimento produzido de forma sofisticada e consciente – o racismo -, está responsável, por consequência, pela inscrição de uma lógica da repetição. Temos uma parte da memória que foi apagada e uma parte da história que se repete. A repetição da violência, a repetição da desmemorialização, a repetição da desumanização. Em dado momento de nossa história, quando havíamos recém proclamado o regime da República no Brasil o então Ministro da Fazenda, Rui Barbosa, ordena a destruição completa de todos os arquivos que pudessem testemunhar e comprovar fatos ou quaisquer dados sobre o período de escravização no país. Em consequência, cria-se uma história monumental e escolhe-se os heróis que lhe convém. Quem escreve essa história? Estamos falando de mortes, em alguns âmbitos e não apenas o da carne.
    É uma aposta a utilização da linguagem artística na tentativa de elaborar essas histórias, não de forma a romantizar fatos tão contundentes, mas na tentativa de buscar em um passado seus pedaços de memória e tentar costurar esses fragmentos. Talvez a palavra empatia não seja suficiente para o tamanho do que precisa ser construído, mas algum caminho que a gente possa evitar ir na direção de uma lógica da repetição. Para que mais Limas Barretos estejam, em vida, sendo valorizados. E em morte façam memória.