24.6.25

Encontro 4 / Genealogias e linhas de DE-MAR-CA-ÇÃO

     O Encontro 4 do Grupo de pesquisa Eiras-Paracambi teve lugar durante o Levante Contramanicomial que ocorreu no galpão da associação cultural Lanchonete<>Lanchonete, Gamboa-Pequena África, Rio de Janeiro, no dia 31 de maio de 2025.

    Durante este evento, que se consistiu em um dispositivo de escuta-performance coletiva, em uma roda viva de produção de memória ao redor de uma grande saia confeccionada pela artista e costureira Neusa do Espírito Santo, nós, Grupo de pesquisa Eiras-Paracambi, lemos vários textos, apresentamos um conjunto de imagens extraídas do filme Eiras, Paracambi (2024, 40 min.) e participamos da costura na saia de algumas destas imagens.







 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Você sempre quis morar em um lugar tranquilo?

por Jacqueline da Costa


    Em meados de 2021 reencontro a Desirée e começamos o rascunho de um projeto. No horizonte, pensávamos sobre a possibilidade de falar da saúde mental a partir da arte. Como retratar essa realidade sem um caráter de denúncia pública e sem entrar no lugar comum das imagens da psicose e de uma miséria social e subjetiva? Onde começa a história da loucura no Rio de Janeiro? Foram as principais questões que levantamos aquele dia almoçando numa mesa na região do centro da cidade. Em uma rápida pesquisa na internet a gente se depara com uma reportagem de jornal que traz a seguinte afirmação: “a Casa de Saúde Dr. Eiras [de Paracambi] já foi o maior hospital psiquiátrico da América Latina”. Munidas de alguma coragem e certa ousadia que só tem quem é (ou já foi) um profissional da rede de saúde mental do SUS, a gente decide, então, iniciar uma pesquisa nesse lugar. Se a história começa em Paracambi, é para lá que a gente vai.  
    É a partir de uma angústia que nasce essa pesquisa. É a partir da necessidade de colocar em trabalho de elaboração simbólica situações que nos marcaram em nossa trajetória como profissionais da saúde. É uma pesquisa que está, ainda, em uma construção em curso, embora já tenhamos agora, em 2025, produzido um filme dessas nossas andanças pelo território da Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi. Em tempo, o filme poderia ter se chamado “Angústia”. 
    Ao longo desses quase quatro anos de caminhada com a pesquisa, tivemos a oportunidade de dividir nosso trabalho em curso com outros pensadores de questões semelhantes às nossas, como uma forma de confluência. Apresentamos o projeto pela primeira vez em 2022, e naquele momento era ainda apenas um desejo de fazer dessa pesquisa um filme. Nos debruçamos na leitura de “Vigiar e Punir” de Foucault, mergulhamos no “Seminário da Angústia” de Lacan, no “Cemitério dos Vivos” de Lima Barreto. Dialogamos com o cinema, a literatura, a filosofia, a psicanálise, até a arquitetura. Existe mesmo uma necessidade de troca para suportar reconstruir essa história. E suportar não é apenas no sentido de aguentar, mas também de dar suporte para uma pesquisa e um tema tão complexo. 
    A gente entendeu que precisaria remontar, recolher os cacos de uma história que foi intencionalmente fragmentada e apagada. Descobrimos nisso a sutileza de uma história, uma narrativa que, embora pareça invisível, se repete. E foi em cima dessa contradição que iniciamos a pesquisa na Casa de Saúde Dr Eiras, mas esbarramos também no Hospital da Cascata, o Hospital de Paracambi, a antiga Fábrica Crowne… histórias que se repetem nessa cidade mas que também nos dão notícias da lógica sob a qual estamos todos inscritos no país de forma geral.
Como mencionei no início, essa pesquisa se concretiza em um filme, mas para chegar nesse formato final, inspirados na própria ideia da clínica peripatética, foram idas e vindas ao território, visitas de campo indo de trem, indo de carro, indo de manhã cedinho, em dia de semana, no final de semana… uma tentativa mesmo de criar uma narrativa honesta sobre esse território, mas também uma forma de escutar e dar lugar a um certo vazio que o trabalho cotidiano da rede de saúde mental do SUS às vezes pode nos trazer. 
    O que vira museu no Brasil? 
    Quais histórias e narrativas são consideradas dignas de serem conservadas? 
    Quais são as memórias que deveriam ser relembradas para não serem esquecidas? São questões que seguem em suspenso e que nos norteiam nessa construção de pesquisa.
    Entre a nossa primeira ida ao território de Paracambi e a última antes da conclusão do filme, já era de nosso conhecimento que os hectares de terra que um dia já foram a Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi, hoje dá lugar a um loteamento para construção de um condomínio de casas de luxo. Em um dos portões de entrada do antigo hospital, hoje tem uma propaganda vendendo um sonho: “Você sempre quis morar em um lugar tranquilo?” é o que está escrito no cartaz para divulgação das vendas. Isto é, o sonho de um futuro tranquilo em uma pacata vida de interior. Embora a afirmativa seja irônica, o fato é que estamos presenciando literalmente uma história que se apaga e se esquece em cima desse solo que um dia já foi um dos maiores hospícios da América Latina. Fica o questionamento de por que essa história precisa ser esquecida.  
    A oportunidade de trazermos essa discussão para uma experiência de troca, em uma roda, a partir da oralidade é também o que permite que, apesar de tudo, essa história não seja esquecida e que se possa fazer memória.
 
(Texto adaptado da minha participação no evento do Levante Contramanicomial ocorrido na Lanchonete <> Lanchonete, 31/05/25) 

Um dos portões de entrada da antiga instituição, 5/6/2021

“Você sempre quis morar em um lugar tranquilo?” Um dos portões de entrada da antiga instituição, 10/9/2022 



 

Linhas e linhas e linhas

por Antoine de Mena


Nessa empreitada do Grupo de pesquisa histórica e artística Eiras-Paracambi, que se apresenta como ele é, um work-in-progress, um processo que vai se desdobrando com o tempo ao ritmo das encontros que a gente vai apresentando, me parece que um motivo prevalece: o motivo da linha.

E na infinidade de formas que este motivo pode apresentar, em primeiro lugar tal vez, possivelmente, está a linha do desejo.

A linha dos nossos desejos convergindo

E está também a linha do trem
A linha reta e a linha curva
A linha do desaprendizando
A linha do abremão
A linha do aconchego 
A linha de conduta

A linha de DE-MAR-CA-ÇÃO... entre o que estaria dentro e o que estaria fora

A linha de partida
A linha de chegada
A linha do horizonte
A linha de figuração... humana, não humana, mais que humana...
A linha cega
E a linha de fuga
A linha das legalidades
E a linha das ilegalidades, aceitas
A linha de montagem
A linha daquilo que se perde e daquilo que se ganha
A linha de crédito
A linha de raciocínio
A linha do juízo
A linha cronológica das dívidas impagáveis

A linha de DE-MAR-CA-ÇÃO... entre o pisar levemente e o pavimentar com certezas

A linha da ingratidão
A linha de produção
A linha de abstração
A linha do texto
A linha da letra
A linha do escapismo decorativo
A linha da arte que não se nomea
A linha preta e a linha branca
A linha da morte

A linha de DE-MAR-CA-ÇÃO... entre o que estaria no centro e o que estaria na periferia

A linha vertical
A linha tangente
A linha inquieta
A linha dura
A linha ausente
A linha frouxa
A linha malandra
A linha invisível
A linha do horizonte
A linha do tempo... que não anda
A linha do tempo... que volta
A linha do tempo... que gira e gira e gira

E nesta infinidade de formas, em primeiro lugar talvez, possivelmente, está a linha de costura...
A linha de costura dos nossos desejos convergindo…